Os "causos" do meu estômago

[texto feito para Farofa Magazine, de Bia Amorim]

No Mercado dos Lavradores da Ilha da Madeira, escutei: “é brasileira, a menina, é?”. Assenti, enquanto tentava comprar uma garrafa de poncha, bebida típica feita de aguardente de cana, açúcar e suco de limão. Então ouvi: “...e a aguardente de vocês não se compara à nossa!”. Ui, doeu. A afirmação cheia de empáfia e sem qualquer constrangimento veio da vendedora. Antes de julgar a falta de hospitalidade, lembrei que a descoberta do Brasil levou a uma terrível crise econômica na Madeira, principal fornecedor de açúcar para o continente europeu, até então. Os avós daquela senhora provavelmente perderam tudo graças à adaptação da cana ao país do “em se plantando tudo dá” e a conveniente mão-de-obra escrava que escavava o solo e afundava os preços. A garrafa de poncha em minhas mãos estava cheia, sim, de rancor.

Na Sardenha, comi um prato de massa de ponto irritantemente perfeito numa birosca à beira-mar. Era improvável. Dois dias depois, a fregola devorada num pé-sujo também emprestava resistência a cada dentada. O esforço do maxilar se fez notar ao longo da viagem, tentando ainda vencer os pães muito ricos. Não se tratava de feliz coincidência: a Sardenha foi um dos maiores fornecedores de grãos da República Romana até a anexação do Egito, e alimentava os exércitos na Itália e no Mediterrâneo. O grão (com trocadilho) foi seu “ganha-pão” por milênios. Não à tôa, os sardos o fazem brilhar em cada preparação.

Bem ao lado, na Córsega, apesar da forte influência italiana dadas as sucessivas e alternadas ocupações, o sotaque que ganhou a batalha no prato foi o francês. Todas as massas são extremamente cozidas. Note-se que a distância entre uma ilha e outra é de apenas 1 hora de barco.

Mais recentemente, numa viagem a Estocolmo, percebi que os desafios agrícolas que o frio e a escuridão impuseram à Suécia ajudaram a formar os pilares da gastronomia nórdica que hoje encanta o mundo. Historicamente, a produção de comida tinha 120 dias para acontecer. Além do breu e do Inverno inevitáveis, os nórdicos se preparavam para possíveis guerras e falta de suprimento no meio do caminho. O resultado foi essa cozinha feita de secos, fermentados e preparações em picles, soluções de um povo acostumado à escassez de alimentos. A necessidade virou originalidade aos olhos do resto do mundo.

Se os relatos aparentemente desconexos não fazem sentido, me explico: todo prato de comida lhe sussurra uma história, e o importante é saber ouvi-la. Sejam guerras, proibições religiosas, mudanças climáticas, migrações, crises econômicas ou ainda - e contraditoriamente – a fome, a história lhe descerá garganta abaixo.

[a foto é do Mercado dos Lavradores de Funchal - capital assim batizada graças ao funcho abundante naquela zona - não disse?]

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Cristiana Beltrão

Esse blog surgiu da necessidade de organizar dicas de restaurantes, paradinhas, bares, mercados e bebidas ao redor do mundo para os amigos. De quebra, acabei contribuindo para jornais e revistas Brasil afora. Espero que gostem.